A evasão e a questão econômica

Por Marcelo Batarce*

O conto de Michael Saltykov, inspirado na sociedade russa do século XIX, mostra a alienação de dois funcionários públicos que subitamente acordam perdidos em uma ilha. Incapazes de qualquer coisa depois de tantos anos vivendo em uma repartição pública descobrem que “[o] alimento humano, em sua forma original, voa, nada e cresce em árvores", diante do que um deles pergunta: “quem teria pensado nisso, hein, Excelência?” (pg. 97).

Qual seria o análogo destes personagens na academia dos dias de hoje? Não seriam justamente aqueles que insistem em desconsiderar a lógica do mercado para entender a realidade pela qual passa a universidade e entoar chavões em defesa da universidade pública, gratuita e de qualidade, sem que nenhum destes três qualitativos tenham sentido claro? Deixando de lado o debate sobre o “público” e a “qualidade”, vamos focar na questão econômica.

Enquanto a direita reproduz de modo simplista e conveniente o fato de que não há nada gratuito, a esquerda liberal, por sua vez, parece estar bastante distante de qualquer crítica séria à economia política. Esta alienação do setor progressista é fruto de sua “luta” por bandeiras abstratas e sua distância da realidade concreta, como por exemplo os fatos estatísticos que mostram, entre outras coisas, que o número (absoluto) de matrículas nas universidades privadas cresceu absurdamente em comparação com o número das matrículas em universidades públicas nas últimas décadas desde FHC, passando por Lula e Dilma.

Se conseguissem deter-se um pouco nestas observações de ordem empírica, notariam mais uma complicação, a saber, sobram vagas nas universidades públicas e muitos trabalhadores escolhem as privadas em detrimento das públicas. A tudo isto deveriam perguntar: por quê? O que faz alguém optar pelo que é pago em detrimento do que é gratuito? Afinal, o que é a gratuidade pela qual se luta? Em resposta a estas questões entram desde psicologismos de senso comum tais como: “não se dá valor ao que é gratuito”, até análises com verniz de economia: o custo da universidade não reside apenas na mensalidade e na matrícula e para uma gratuidade genuína o Estado teria de investir mais ainda nas universidades públicas para bancar também os custos pagos pelos alunos.

Vamos abrir um rápido parêntese para falar destes custos, ainda no campo de uma análise empírica. Uma das formas de cobrir ao menos parte dos gastos pagos pelos alunos está na distribuição das tradicionais bolsas de estudos e mais recentemente, dos auxílios/benefícios. Com relação às bolsas, estas formas de “rendas” fundamentais no funcionamento das grandes universidades tradicionais, atendem a classe média, funcionando como uma gratificação extra para aqueles que têm mérito (meritocracia) e disposição.

Em geral, nenhum destes depende da renda da bolsa para sobreviver. Trata-se apenas de um benefício extra ou complementar. Além disto, os bolsistas da classe média têm tempo disponível porque não trabalhavam concomitantemente, de modo tão intenso, com os estudos universitários e não acumulam tantos problemas de ordem socioeconômica (chefes de família com renda baixa, mães solteiras, etc.…).

Na nova realidade, com a expansão da universidade, quando a classe trabalhadora está na universidade, esta forma de renda não os atende. Estes trabalhadores, muitas vezes, não têm tempo disponível para se dedicar a uma renda extra. As bolsas não substituem o salário de um trabalhador e não suprem as demandas de um pai de família ou uma dona de casa. Conclusão, estas bolsas em geral são inúteis para públicos de baixa renda e por esta razão crescem as políticas de auxílio e assistência social na universidade.

Uma política que de fato pudesse cobrir os gastos de sobrevivência destes alunos, certamente dependeria de um montante de recursos muito maior e uma lógica diferente, seria preciso uma bolsa que pudesse competir com o valor médio do salário dos trabalhadores que agora frequentam a universidade para que eles pudessem escolher entre um ou outro, já que se trata de sobrevivência e não complemento.

Apresentado estes “fatos” de ordem mais empírica (embora sem enfatizar uma dualidade entre empírico e teórico), vamos agora enunciar a contradição fundamental que já deve ter sido despertada no leitor mais atento. Quando confrontados com os fatos expostos acima, o setor progressista agarra-se no primado da política e da gestão, afastando-se da discussão de ordem econômica. Costumam culpar os políticos e gestores por terem desviado dinheiro do setor público para o privado, como se o dinheiro dos lobbies e o dinheiro da educação estivessem guardados e fossem gerenciados de modos completamente independentes um do outro.

O primeiro servindo aos cínicos interesses de alguns e o segundo estocado no imaculado cofre do Estado, uma entidade, por consequência, também imaculada, mas que por descuido, vez ou outra, acaba na mão daqueles mesmos cínicos lobistas. Para toda esta situação o setor progressista tem uma resposta simples que, em momentos convenientes, expressam muito bem: o fenômeno de expansão das matrículas das particulares é um fenômeno de barateamento da educação. Este barateamento é “denunciado” em forma de um incômodo.

Algumas questões neste ponto ajudam a fazer emergir as contradições: Se estamos fora da lógica do mercado, porque nos preocupa o “barateamento” dos outros? E, recolocando a questão inicial, qual o significado de “barateamento” diante da gratuidade? Nas entrelinhas deste mesmo discurso está também a percepção de que, via de regra, é mais fácil conseguir o diploma em uma universidade particular. Inconscientemente fica sugerida uma ponte direta entre facilidade de conseguir o diploma e barateamento.

Vamos primeiro destacar duas asserções que devem ser retiradas do que foi colocado até aqui: 1 - barateamento não é outra questão, senão uma questão de preço e custo; 2 - o barateamento, ou o custo de modo geral, do qual se fala aqui, está diretamente ligado há uma prática muito central na educação: a aprovação/reprovação. Em suma, quando se usa inconscientemente a palavra “barateamento” para significar um curso mais fácil, aquilo que subjetivamente significa “qualidade” e em última instância depende do processo de aprovação/reprovação, do tempo do curso, etc., em uma palavra, da dificuldade de se obter o diploma, tem uma implicação econômica bastante real - e não apenas de ordem teórica - para o aluno-trabalhador, embora nem tanto para o docente progressista.

É diante desta realidade que asserções do tipo “não iremos nos curvar diante da lógica do mercado” podem adquirir um sentido apenas demagógico e populista. De fato, se “manter a qualidade” implica uma dificuldade no processo de obtenção do diploma, digamos de modo mais direto, no processo de seleção, para além das subjetividades relacionadas ao significado de “qualidade”, não se pode negar que há também implicações econômicas disto para o estudante. Ironicamente a implicação econômica está bem dita pela literalidade do (não) barateamento, a saber, a dificuldade de se obter o diploma é proporcional ao preço a se pagar. Portanto, rigorosamente isto não significa estar fora da lógica do mercado, muito pelo contrário, manter um preço mais alto é uma aposta de mercado. Eis a origem da evasão dos alunos que parece despercebida por aqueles alienados à realidade do mercado.

Continuemos agora pela via da crítica da economia política. Quando falamos de preço estamos falando de mercadoria. Portanto devemos perguntar: de qual mercadoria estamos tratando? Chamaremos esta mercadoria de força de trabalho qualificada (FTQ), para manter coerência com trabalhos, “The productivity of students’ schoolwork: an exercise in Marxist rigour” (Baldino & Cabral, 2013) e “Profitability of qualified-labour-power production” (Baldino & Cabral, 2015). Introduzida a questão econômica, podemos colocar as coisas de forma bem óbvias e dizer o que todo mundo já sabe, mas que fica escondido atrás de diversos chavões do tipo “não iremos nos curvar diante do mercado”, “defendemos a universidade pública, gratuita e de qualidade” e tantos outros.

O barateamento das privadas incomoda os docentes das públicas simplesmente porque ambos disputam o mesmo mercado. A escolha de ir para esta ou aquela universidade depende da relação entre o investimento que o estudante fará para se formar e o retorno que o diploma lhe concederá quando ele for vender sua FTQ no mercado. Por algum tempo, o cálculo era compensador para a universidade pública, mas com as transformações sociais e econômicas recentes (citaremos algumas sem discuti-las aqui: perda de valor signo das universidades públicas, queda do valor da mão de obra, declínio da ideologia do Estado de bem estar social) o cálculo apresenta outro resultado.

Quando a esquerda liberal em sua infantilidade de super-herói diz que “não se curvará à lógica do mercado”, ela está dizendo o quê? Primeiro que irá recorrer ao Pai, o Estado, para bancar seu sonho, mas já vimos que isto é uma ilusão, mesmo com investimento muito maior do Estado (e o Estado não é um ente imaculado como tentam nos fazer acreditar) a questão da aprovação/seleção, o tempo do curso, ainda sujeita o custo da formação, de modo que o cálculo não é tão simples. Mesmo com muito investimento, bolsa ideal, etc.… um aluno não iria dispensar tempo em um curso que não será aprovado, ainda que o outro curso necessite mais investimento e tenha um valor final (valor signo) de mercado menor, este outro será mais vantajoso diante do primeiro cujo investimento resultou em perda total.

Em todo caso o que está em jogo é o investimento, em termos de tempo, esforço, etc. necessário para ser formado em uma universidade pública versus o investimento necessário para ser formado em um curso de EaD em relação ao benefício que cada um trará ao formando. Ora, não sejamos infantis, a lógica do mercado não é uma lógica qualquer, mas é a lógica total, é a lógica que rege a sociedade da mercadoria, é a lógica que paga o salário com que se compra a comida e etc.… Não há uma alienação maior do que acreditar que seja possível abdicar desta lógica.

*Doutor (PhD) em Matemática pela London South Bank University; Professor efetivo do curso de Matemática da UEMS (UU-Dourados); Filiado à ADUEMS.

Referências

Baldino, Roberto & Cabral, Tânia. (2013). The productivity of students’ schoolwork: an exercise in Marxist rigour. Journal for Critical Education Policy Studies, Volume 11, Number 4.

Baldino, Roberto & Cabral, Tânia. (2015). Profitability of qualified-labour-power production. Journal for Critical Education Policy Studies. 13. 67-82. Saltykov, Michael. Um Mujik e Dois Funcionários Editora Cultrix LTDA. 3ª Edição.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PROFESSOR, SUA PROFISSÃO ESTÁ POR UM FIO: A REFORMA ADMINISTRATIVA VAI DESTRUIR A CARREIRA DOCENTE E A LIBERDADE DE ENSINO

Separando o joio do trigo