PROFESSOR, SUA PROFISSÃO ESTÁ POR UM FIO: A REFORMA ADMINISTRATIVA VAI DESTRUIR A CARREIRA DOCENTE E A LIBERDADE DE ENSINO
Por Volmir Cardoso Pereira[1]
Comecemos com um exercício de imaginação a partir do que está
sendo proposto na PEC 32/2020, a tal “Reforma Administrativa”[2].
1. Imaginem escolas e universidades com pouquíssimos professores
concursados e a grande maioria de professores com contratos temporários.
2. Imaginem agora que os professores que passaram nos
concursos que ainda restavam não têm mais nenhuma estabilidade e podem perder o
cargo se houver qualquer “interesse da administração pública” que justifique
isso. Ou se o governante simplesmente disser que é preciso apertar o cinto, porque as contas públicas estão ruins.
3. Imaginem professores descontentes fazendo greve por conta
do fim de seu plano de cargos e carreiras e por estarem sofrendo cortes
salariais ano a ano, tudo amparado pela Constituição Federal e suas Emendas
remendadas (essa é mais fácil de imaginar, porque já está acontecendo).
4. Imaginem professores contratados para substituir os
professores grevistas, que logo em seguida poderão ser exonerados de vez, já
que “não querem trabalhar” e ficam só conspirando em “sindicatos de vagabundos
comunistas” (obs: os professores contratados poderão ser convocados rapidamente
por um aplicativo, para substituir os grevistas. As aulas online serão uma boa
opção).
5. Imaginem professores sendo obrigados a rever suas
metodologias de ensino, suas pesquisas e suas posições políticas apenas para
não desagradar os governantes de plantão, nem os lobbies de mercado que financiam esses mesmos governantes.
6. Imaginem, por fim, os professores idosos na hora de se
aposentarem. Imaginem principalmente aqueles que ficaram quietinhos, que não reclamaram
e fizeram tudo o que os governantes de plantão pediram e, por isso, não foram
demitidos. Eles se aposentam, quase satisfeitos por serem “cidadãos de bem”, e
de repente descobrem que não tem mais fundo previdenciário pra sustentar suas
aposentadorias e que estão na mesma vala dos indigentes, junto dos colegas que
envelheceram cheios de cicatrizes e traumas, lutando contra o sistema.
A imaginação poderia ir mais fundo, caso fôssemos avançar na
arquitetura dantesca deste inferno que a PEC 32 anuncia. Mas penso que já é
suficiente para termos a medida do que está em jogo nesse momento, para nós,
professores, nesta republiqueta sitiada por tubarões corporativos, a qual chamamos ficcionalmente de Brasil.
O exercício de imaginação, como se pode perceber, é um
estímulo à compreensão de um futuro bem próximo, tendo em vista que em torno de
70% dos servidores públicos se aposentarão até 2035. Ou seja, o inferno é logo
ali. E o fim do serviço público tal qual o conhecemos, está começando agora.
Bem, após termos imaginado o cenário escatológico, resta
saber em que medida o povo, em geral, pode apoiar uma mobilização massiva em
defesa do serviço público nesse momento. Essa é a questão principal, a meu ver.
A grande mídia empresarial vende a todo instante a ideologia de
que os servidores são “privilegiados” porque ganham muito acima dos
trabalhadores da iniciativa privada (como se todos os servidores fossem juízes,
militares de alta patente ou coisa parecida!). Para o trabalhador que está no
comércio e ganha um salário mínimo e miserável, ou o entregador de aplicativo que
nem isso ganha, desesperado com os preços altos do mercado, a ideia de que é
preciso cortar os “privilégios” e as “mamatas” do serviço público pode soar
como uma revanche contra o sistema. Além disso, dentre todas as perversões que
a elite brasileira e seus arautos têm cometido durante esse genocídio
consentido provocado pela pandemia de Covid-19, é notória também a estratégia
de colocar de um lado os 60 milhões de brasileiros sem renda, que precisam do
auxílio emergencial para não morrerem de fome, e de outro, os “privilegiados”
do serviço público que “querem” lockdown
pra ficar em casa, “curtindo” o isolamento com seus salários em dia.
Vivemos um momento histórico em que o ódio, enquanto afeto
político[3],
circula em meio ao povo, fazendo os trabalhadores se digladiarem numa “luta
pela sobrevivência”, abandonando as formas coletivas de resistência e
cooperação. E esse ódio é fermentado em rede, em uma engenharia do caos que
favorece, e muito, as novas formas de controle do capital, para além das moribundas
democracias liberais[4].
Nesse contexto em que os sentimentos mais primitivos são
acionados nas redes sociais para produzir a “guerra de todos contra todos”[5],
o que nós, professores, podemos fazer? Nós, os que ainda acreditamos (ou
acreditávamos) no sonho iluminista da razão e do pensamento como forma de
organização democrática da sociedade?
Se o corporativismo sindical (luta por melhores salários,
condições de trabalho, carreira, etc. ) já não tem nenhuma força diante dos lobbies de mercado que ditam a agenda do
Congresso, dos governos estaduais e do atual presidente, o que nos resta senão
compreender o que se passa com os trabalhadores em geral e traçar novos
movimentos de resistência?
Professores, é tempo de estudo, é tempo de sair a campo.
É tempo de reaprender, junto com os estudantes e com os trabalhadores
precarizados e endividados, a imaginar um novo mundo habitável, um novo sonho
coletivo. E a imaginação só poderá fazer frente ao filme de horror que nos
anunciam, na medida em que possamos ser também motivo de terror para os que
controlam o imaginário brasileiro hoje. A realidade da luta de classes,
senhoras e senhores, nunca esteve tão clara. E nossa posição também necessita
ser clara.
(Texto escrito em 02 de março de 2021)
[1] Vice-presidente da Associação dos Docentes da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (ADUEMS/ANDES-SN); Doutor em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); Professor efetivo do curso de Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).
[2]
Para compreender criticamente o texto da PEC 32/2020, recomendamos a leitura da
análise feita pela ANFIP, disponível em https://www.anfip.org.br/wp-content/uploads/2020/10/RA-CARTILHA-REFORMA-ADMINISTRATIVA.pdf
.
[3] Cf. SAFATLE, Vladimir. Circuito dos Afetos: Corpos
políticos, Desamparo, Fim do Indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
[4] Cf. DA EMPOLI, Giuliano. Os Engenheiros do Caos. Tradução
Arnaldo. Bloch. 1. ed. Vestígio. São Paulo. 2019.
[5] Referência à expressão clássica de Thomas Hobbes (HOBBES, T. Do cidadão. 3. ed. Tradução de Janine Ribeiro. São Paulo:
Martins fontes, 2002)

Eu lembro da oposição sistemática e da negação como atuação sindical escolhida pelo Andes contra a CUT e contra os governos do PT. E de como corroboraram as teses criminosas e farseacas da Lama JATO... sofremos todos a barbárie agora. Mas o Andes deu sua parcela pra isso tudo que aí está... Bastava derrotar e destruir a CUT e o PT...
ResponderExcluirEu insisto em lembrar ainda que preferisse esquecer.
Bem lembrado!
ExcluirEmbora eu acho que tudo isto segue forças muito maiores do que o ANDES e que portando ocorreria de uma forma ou de outra, entendo que é fundamental lembrar a posição do ANDES na época, justamente para entendermos melhor as contradições.
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